*** Por Luís Carvalho, da Inforpress ***
Cidade da Praia, 08 Mai (Inforpress) – A lei que controla a riqueza dos titulares de cargos públicos “não passa de letra morta” em Cabo Verde e, por isso, não é cumprida, havendo quem defenda que a comunicação social deveria divulgar os nomes dos incumpridores.
Numa incursão pelo Tribunal Constitucional (TC), a reportagem da Inforpress pôde notar aquilo que se pode designar de desprezo “gritante” em relação à lei que fiscaliza a riqueza dos titulares de cargos políticos, gestores públicos e equiparados.
Embora a legislação exista desde 1995, muitos ainda não conseguem preencher correctamente o modelo disponibilizado pelo TC, presencialmente ou através do seu site, e alguns fazem-no de acordo com os seus interesses. É o caso de autarcas que, na parte referente ao rendimento colectável bruto, se limitam a declarar o total do montante sem discriminar o salário, os subsídios que recebem e de outros proventos.
Muitos dos que apresentaram declarações de rendimentos junto do TC limitaram-se a indicar o número das suas contas, sem precisar o montante, quando a lei obriga ao declarante a indicar a respectiva quantia depositada. Outros ainda ocultam o subsídio de comunicação que, em alguns casos, ascende a 13 mil escudos.
Uma outra constatação é que a maior parte dos que deixam de exercer cargos, nomeadamente de membros do governo, gestores públicos, embaixadores e deputados, não actualizam as suas declarações de interesse, património e rendimentos junto do Tribunal Constitucional para efeito de averiguação, conforme indica a lei.
Para o jurista Silvino Fernandes, o não cumprimento da lei “não é normal, foi normalizado”.
“Temos um problema de base, que se prende, justamente, com o propalado "Estado de Direito Democrático" que, num contexto de pura euforia política declarou-se na Constituição de República que somos, ou éramos, mas não foi acompanhada de preparação, de educação no e para o processo de construção do Estado de Direito Democrático”, pontuou Fernandes, para quem Cabo Verde “é um Estado formalmente de direito democrático, porém, materialmente falido”.
Na sua opinião, um Estado “que despreza um dos seus elementos fundantes mais importantes, o povo, é um estado, e muito menos de direito e democrático”.
Quanto ao não cumprimento das leis da República, Silvino Fernandes entende que em primeiro lugar está o interesse do próprio legislador.
“Isto passa, necessariamente, por um Estado que seja probo, honesto, sério nos seus compromissos e propósitos e, infelizmente, não o temos”, frisou, a propósito.
O advogado defende ainda que o Tribunal Constitucional deve ser dotado das condições de aplicabilidade dos normativos criados.
“O TC precisaria de STAF específico, um quadro de pessoal preparado, em número e qualidade, para seguir o manancial de exigência que esta lei lhe impõe”, sugeriu Fernandes, acrescentando que o Estado não está disposto a criar esse staff.
Para Silvino Fernandes, neste momento, a lei que controla a riqueza dos políticos e outras entidades acaba “por não passar de letra morta, com suspiros ocasionais de vida, aqui e acolá, contra um ou outro sujeito”, mas que nunca terá uma “verdadeira implementação”, pelo menos, nas conjunturas em que o País está.
Instado por que motivo a lei não é cumprida, explicou que a legislação foi desenhada e montada, para não ser cumprida e clarifica:
“O artigo 1.º [da Lei n.º 139/IV/95, de 31 de Outubro] dispõe que a presente lei define o regime jurídico do controlo público dos titulares dos cargos políticos e o artigo 8.º estabelece a restrição da divulgação pública, e criminaliza o acto”, realçou, lamentando que a lei pune com o dobro das penas da divulgação, se esta for feita através da comunicação social.
Por sua vez, o cientista político Abel Djassi Amado defende que os órgãos competentes, que deveriam assegurar o cumprimento da lei, muitas vezes “não estão para aí virados”.
Este professor universitário advoga, por outro lado, que a entidade com competência para observar o cumprimento da lei de controlo de riqueza dos titulares de cargos públicos “não dispõe de meios, sejam humanos ou de outra natureza, para garantir esse cumprimento”.
“Sabendo o indivíduo dessa incapacidade institucional, acaba por optar pela via que lhe é menos onerosa, ou seja, a que reduz os seus custos pessoais, neste caso, evitando a exposição pública de informação de natureza privada”, indicou Djassi Amado, acrescentando que as pessoas decidem por não cumprirem a lei “por saberem que tal incumprimento dificilmente acarretará consequências”.
Na sua perspectiva, “pode-se aventar mesmo a hipótese de uma falta de vontade política, derivada, em grande medida, da degradação da moral e do Estado como um todo”.
A ideia basilar da lei em questão, sublinhou o investigador, “é a de combater a corrupção, em particular o enriquecimento ilícito decorrente da ocupação de determinados cargos na máquina do Estado”.
Alguns, acrescentou a mesma fonte, não cumprem o espírito da lei pelo facto de saberem que, de certa forma, “esse incumprimento foi aceite, na prática, como algo natural e normal”.
Abel Djassi Amado defende que o Estado deve criar “condições reais” para a publicitação acessível e permanente (online ou por outro meio) da lista daqueles que estão obrigados a declarar os seus bens.
“Com base nessa lista, a sociedade civil, nomeadamente os meios de comunicação social, deverá actuar como auxiliar da lei, divulgando os nomes dos incumpridores, o que deverá gerar vergonha e, consequentemente, uma mudança de comportamento”, propõe o analista político, ajuntando que isto pode pôr em causa a reputação do indivíduo.
A Inforpress tentou saber junto do presidente do Tribunal Constitucional, José Pina Delgado, que medidas a instituição pode adoptar para pôr cobro à situação, mas não foi possível. Foi-lhe enviado um conjunto de perguntas, através da sua directora de gabinete, que, infelizmente, ficaram sem respostas.
Em Cabo Verde, a lei que controla a riqueza dos titulares de cargos públicos data de 1995, mas no arquipélago não há registo de alguém ter sido penalizado por violação desta norma jurídica.
A aprovação desta proposta de lei, apresentada pelo antigo deputado Alfredo Teixeira, que se tornara independente, na sequência da primeira cisão no seio do Movimento para a Democracia (MpD), aconteceu depois de insistentes buscas de consenso entre o proponente e a bancada do MpD que apresentou propostas de alteração a quase todos os artigos da proposta inicial.
Em Portugal, país que tem servido de inspiração aos legisladores cabo-verdianos, a fiscalização do Tribunal Constitucional já fez cair presidentes de câmara, vereadores, administradores de institutos e empresas públicas e municipais.
Na ocasião, em declarações ao extinto Novo Jornal de Cabo Verde (NJC-jornal público), após a aprovação do seu projecto de lei, Teixeira disse que tinha o sentimento de dever cumprido. No entanto, apontou uma “tentativa da parte da bancada do MpD no sentido da descaracterização” do citado projecto de lei.
LC/JMV
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