São Filipe, 23 Set (Inforpress) – Ao revisitar os últimos 50 anos da ilha é impossível não destacar a figura de Eugénio Veiga, primeiro presidente da câmara municipal antes da fragmentação administrativa que originou os municípios dos Mosteiros e de Santa Catarina do Fogo.
Mais do que um político, Eugénio Veiga é uma “memória viva” de um tempo em que a gestão pública ainda buscava os seus alicerces no pós-independência.
Em entrevista exclusiva à Inforpress sobre a sua gestão e o percurso da ilha pós-independência, Eugénio Veiga traça um panorama crítico, directo e, por vezes, contundente sobre o que foi feito e o que deixou de ser feito, ao longo das últimas décadas.
Segundo Eugénio Veiga, negar os avanços do Fogo seria desonesto e como exemplo, destacou avanços nos sectores da água, electricidade e desencravamento de localidades.
“A água, antes, era das ribeiras e cisternas. Hoje, praticamente cada casa tem a sua torneira. A electricidade chegou a quase todos os concelhos, houve o desencravamento das localidades e a conexão de zonas isoladas”, afirmou.
No entanto, alerta que muito desse progresso estagnou após a sua gestão, especialmente em relação à continuidade da rede viária em zonas onde era essencial para o desenvolvimento das comunidades.
Para Eugénio Veiga, existe um paradoxo profundo entre o potencial da ilha e as escolhas políticas feitas a nível nacional.
“Desde a independência, houve luz, mas também muitas trevas, principalmente no que toca à conectividade inter-ilhas, que é uma vergonha nacional”, advogou Eugénio Veiga que crítica a mobilidade e o modelo económico.
Um dos pontos mais críticos da visão de Eugénio Veiga refere-se à mobilidade interna no arquipélago e defende um modelo racional, com apenas dois aeroportos internacionais, Sal e Praia, e uma frota de aeronaves em número suficiente e com capacidade para garantir ligações regulares às restantes ilhas.
“Cabo Verde não tem mercado para tantos voos internacionais. Insistir nisso é um crime económico”, afirmou Eugénio Veiga, que também criticou o modelo de ligações marítimas e sublinhou que a ilha do Fogo, como outras, deveria ter uma ligação regular, como Santo Antão.
“Hoje, as ilhas estão isoladas, os custos são altos e não existe uma política coerente de transporte”, rematou
Na década de 1990, a cooperação internacional tinha áreas de actuação bem definidas em Cabo Verde: a Alemanha no Fogo/Brava, a França em São Nicolau, a Holanda em Santo Antão, a Suíça na Boa Vista e a USAID em Santiago.
“A intenção era boa, mas não houve acompanhamento. E também faltava capacidade nacional para dirigir o processo”, lamentou.
Como exemplo, cita a resistência da cooperação alemã à ideia de universalizar a construção de casas de banho em São Filipe, no momento em que se substituía a conduta de água com o argumento de que a população não teria como pagar pelo serviço de água.
“Eles não entendiam a nossa realidade e, na Praia, muitos celebravam os desentendimentos em vez de intermediar soluções”, criticou.
Eugénio Veiga vai além das críticas técnicas e entra no campo das escolhas estruturais e para ele, o modelo de turismo actual é insustentável.
“O turismo, como está a ser feito, não gera riqueza real. Colocar pessoas pobres ao redor de hotéis, com salários de miséria, é uma bomba-relógio social”, destacou o ex-autarca que também apontou o fracasso do chamado “cluster do mar” que considera um “desastre”.
“Gastaram dinheiro, desmantelaram estruturas e não houve retorno. Onde está o mar como fonte de riqueza e alimentação?”, questionou.
Se há um sector em que a ilha do Fogo deu passos largos, foi a educação e, segundo Eugénio Veiga, a sua gestão municipal massificou o acesso ao ensino secundário e investiu no ensino superior, inclusive com bolsas para o exterior, Portugal e Brasil.
“Nenhuma criança ficou de fora. Começámos com condições precárias nos transportes escolares, mas fomos melhorando”, pontuou.
Eugénio Veiga não acredita que a ilha perdeu prestígio no contexto nacional e afirmou que “o Fogo tem potencial, mas falta ousadia, responsabilidade e oportunidade. Falta quebrar o ciclo de propaganda e criar condições reais de crescimento”.
“É preciso pensar Cabo Verde com coragem e acabar com o cinismo e a hipocrisia do facilitismo. O Fogo tem tudo para liderar, mas é preciso parar de fingir que estamos no caminho certo, quando o caminho está torto”.
A trajectória da ilha do Fogo nas últimas cinco décadas mistura avanços notáveis com estagnações estratégicas.
Eugénio Veiga, com todas as suas marcas, acertos e conflitos, deixa claro que não se trata apenas de fazer obras, mas de pensar o país com responsabilidade e visão de futuro e nesse sentido, a sua voz continua a ser uma chamada para que a ilha do Fogo seja protagonista do seu próprio destino.
JR/HF
Inforpress/Fim
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