*** Por Luís Carvalho, da Inforpress ***
Cidade da Praia, 15 Mai (Inforpress) – O frei António Fidalgo, antigo director do jornal Terra Nova, tido como um “lutador pela democracia no País”, diz que, para Cabo Verde, a pergunta se valeu a pena a independência “não se põe”.
Em entrevista à Inforpress, a partir dos Estados Unidos de América, onde vive actualmente, é peremptório ao afirmar que, em relação a Cabo Verde, a questão se valeu a pena o País se tornar independente só se poderia colocar “se não tivesse conquistado, juntamente com a independência, também o pluralismo político, a alternância, e a democracia”.
“Temos de dar parabéns a Cabo Verde que, após vencer o partido único, já conseguiu três alternâncias a nível de governo e os presidentes da República não têm sido indivíduos de uma só cor política”, congratulou-se o frei Fidalgo, para quem Cabo Verde “continua a ser um exemplo para África e para vários países do mundo”.
Acrescenta que, hoje, quando olha para a actualidade política dos Estados Unidos, acha que “Cabo Verde neste momento está melhor a nível, por exemplo, da questão da independência dos poderes legislativos, judiciais e executivos”.
Na sua perspectiva, o país “está melhor, também, na questão da liberdade de expressão”.
Frei Fidalgo muito cedo abraçou a causa da independência das antigas colónias portuguesas. Quando se lhe pergunta como surgiu o seu sonho independentista, responde neste termo:
“Não é fácil entender essa minha opção de há 50 anos. Quando eu fui para Itália estudar Teologia, em 1968, levei uma mentalidade de colono. Para mim, estava tudo bem, e os que lutavam nas colónias pela independência, eram causadores de terror. Estava tudo bem, de Minho, passando por Cabo Verde, até chegar a Timor. Encontrei na Itália e em toda a Europa uma sociedade em ebulição. Fui tomando consciência de que afinal estava tudo errado na minha cabeça”.
Revela que foi conhecendo a doutrina social da Igreja e descobriu que “o princípio da autodeterminação dos povos é um direito internacional também para a Igreja”.
“Quando os lideres ´terroristas´ foram recebidos pelo então Papa Paulo VI, eu já estava completamente conscientizado. Inclusive enviei uma mensagem a Amílcar Cabral com um colega de Moçambique que fez questão de ir a Roma na altura”, pontuou o sacerdote, acrescentando ser natural que, voltando para Cabo Verde para ser ordenado padre, em , “não ficasse alheio ao que se passava nesse complicado momento de transição. Achei que não teria sido honesto comigo mesmo, se assumisse uma posição de neutralidade”.
Foi assim que decidiu então aceitar a proposta para ser deputado, tendo em vista ajudar a conseguir “essa meta importante da independência”.
“Padre e deputado? Não era propriamente uma novidade, apesar das reticências da minha igreja e das restrições que ela impunha nessa matéria”, sublinhou.
Instado sobre as razões que o levaram, mais tarde, a entrar em rota de colisão com os seus “camaradas” de então, explicou que tinha consciência de que a sua opção não tinha um “carácter absoluto”.
“Sabia que tarde ou cedo eu me afastaria. Era isso que eu dizia nas entrevistas que na altura eu dava”, indicou Fidalgo.
Nessa época, acrescentou, havia correntes na Igreja que procuravam pontos comuns entre o Evangelho e o socialismo.
“Por algum tempo, esses ensaios foram feitos em países da Europa e América Latina. Eu também tentei ver até que ponto isso era possível”, assinalou o antigo director do “Terra Nova”.
“Hoje posso dizer o seguinte: é como a água e o azeite. Não se misturam. Não quer dizer que não possa haver diálogo, o Evangelho dialoga com todos, mas sem deixar de ser aquela lâmpada colocada no alto para iluminar todas as realidades humanas, mostrando o que é bom para o ser humano e o que é contrário à sua dignidade”, enalteceu Fidalgo.
A certa altura, passou a ser um crítico do regime de partido único, o que lhe valeu alguns dissabores, nomeadamente uma condenação a dois anos de prisão, com pena suspensa. Recorreu da decisão do tribunal de primeira instância e, 13 anos depois, o Supremo Tribunal de Justiça “considerou que o jornal não cometeu crime nenhum”.
“Interessante é observar que o julgamento do ´Terra Nova ´foi precedido duma campanha feroz de recolha de assinaturas, na sequência dum editorial intitulado 'E nós duvidamos', em resposta a um discurso do então Presidente da República, Aristides Pereira. No fim desse 'tufão', recebi a convocação para comparecer no Tribunal e ser julgado”, afiança António Fidalgo.
Perguntado sobre o juiz que o julgou, responde que é partido único.
À pergunta se consegue perdoar aqueles que o condenaram, afirma: “Claro que sim. A história não se apaga, as lembranças ficam, mas no meu coração não existem mágoas nem rancores. Sou cristão e sou padre. Perdoo tudo, devo perdoar”.
O seu sonho não era apenas ver o país independente, mas também democratizado. Cedo percebeu que isso não fazia parte dos desígnios do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde.
“O meu afastamento deu-se precisamente quando contestei o projecto da Constituição de 1980, que no seu artigo 4.º dizia que na República de Cabo Verde, o PAIGC é a força política dirigente da sociedade e do Estado”, explica o frei Fidalgo, que garante ter visto a desabar sobre si “tronos e dominações”.
“Senti-me como atirado para longe como um trapo. Mas não desisti e, no dia seguinte, estava eu outra vez a lançar pedras no charco, propondo que 50 % dos candidatos fossem independentes e, portanto, não do PAICV. Eu sabia que não podia mudar nada, queria apenas levar os colegas e a sociedade a refletirem”, revela o entrevistado da Agência Cabo-verdiana de Notícias, adiantando que não tinha corrido atrás de uma ilusão, “simplesmente o romper da aurora é que estava longe de acontecer”.
Defende que a fundação do jornal Terra Nova, em Abril de 1975, portanto, poucos meses antes da independência, “foi providencial”.
“Ao sair desse recinto, para levar motivos de reflexão para um terreno aberto, tinha comigo o jornal que bem cedo passou a ser chamado de ’jornalinho da oposição’”, enfatiza Fidalgo.
Segundo ele, alguns artigos, que tinham a ver com direitos humanos e respeito pela vida, “começaram a incomodar”.
“As páginas do jornal traziam homilias do bispo Dom Paulino [já falecido] e os pronunciamentos do então Papa João Paulo II, célebre pelas posições que tomava em relação a regimes autoritários”, releva António Fidalgo, exprimindo que havia também a página dos leitores [O leitor tem a palavra], “onde cada um podia dizer livremente, mesmo sob pseudónimo, aquilo que era proibido dizer. Deste modo, o jornal Terra Nova foi-se tornando uma espécie de oásis onde era possível experimentar, dentro de muitas limitações, a liberdade de expressão”.
Lembra que ficaram célebres os textos do seu “corajoso amigo Teófilo Santos Silva”.
“Para mim, foi um herói e devo-lhe muito. Mas fizeram-lhe a vida cara e a sua saúde ficou comprometida”, afirmou, referindo-se a Teófilo Santos Silva.
Confrontado com a pergunta se se pode considerar que o jornal Terra Nova teve um papel importante na democratização do País, o frei Fidalgo assevera: “É o que muitos dizem”.
Padre António Fidalgo vive actualmente nos Estados Unidos e está lá, segundo ele, pelo tempo que os seus superiores em Cabo Verde quiserem e não pensa ainda em resignar.
“Fui nomeado pelo anterior arcebispo de Boston, Cardeal Sean Patrick O’malley, vigário paroquial em St. Patrick e St. Peter (Roxbury e Dorchester, respectivamente). Estou ao serviço dos cabo-verdianos. Tenho 77 anos, mas no dicionário dos capuchinhos o verbo resignar não existe. Enquanto houver saúde, trabalha-se”, concluiu Fidalgo.
LC/JMV
Inforpress/Fim
Partilhar