Carteiras criolas, arte que nasceu do refúgio e se tornou referência em Santo Antão

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Carteiras criolas, arte que nasceu do refúgio e se tornou referência em Santo Antão
22/04/25 - 12:36 pm

*** Por Lucilene Fernandes Salomão, da Agência Inforpress *** 

Ponta do Sol, 22 Abr (Inforpress) - Hernani Lima, jovem artesão natural de Santo Antão, encontrou na arte um caminho de superação, hoje, transforma materiais reciclados em “peças únicas” que dão nova vida ao artesanato da ilha e projectam a sua criatividade além-fronteiras.

Carteiras criolas, muito mais do que um nome, segundo Hernani Lima, é o reflexo de uma história de superação, criatividade e reinvenção pessoal.

A história deste jovem não começa com tecidos ou tesouras, mas com uma notícia que lhe mudou a vida. Ainda adolescente, foi-lhe diagnosticada uma doença cardíaca que exigiu longos e delicados tratamentos.

“Foi o fim precoce de dois sonhos que me acompanhavam desde a infância, jogar futebol e estudar. Tive que os abandonar para concentrar na minha saúde. E nisso a arte surgiu como uma alternativa, como uma forma de espairecer e viajar no mundo da minha imaginação,” partilhou.

Segundo Henani Lima, durante os momentos mais difíceis, em que o corpo precisava de repouso, mas a mente procurava libertação, nasceu a primeira “semente” do que viria a ser um projecto de vida.

A sua primeira peça artesanal foi, curiosamente, uma carteira feita para uso próprio. Tinha a funcionalidade simples de guardar documentos e moedas, mas carregava algo “muito maior, o gesto espontâneo de criar, de transformar o tempo e o pensamento em algo tangível”.

“Fiz a primeira carteira para mim. Queria algo diferente, feito por mim mesmo. Depois, comecei a fazer outras para oferecer aos amigos, quase como uma brincadeira e eles adoraram”, salientou.

Feitas à mão, com materiais reciclados como pacotes de leite, tecidos reaproveitados e cola, as carteiras criolas começaram a ganhar forma e nome de forma orgânica.

“O que começou como passatempo depressa se tornou num pequeno movimento de entusiasmo entre os que me rodeavam. As peças chamavam a atenção pela originalidade, pelo toque pessoal e pela ideia de transformar materiais comuns em objectos com identidade”, recordou.

“Na altura, ainda vivia com os meus pais. Comecei a vender, mas não era propriamente um negócio. Hoje posso dizer que é um verdadeiro projecto e vivo disso com orgulho”, afirmou.

Hernani Lima disse que a escassez de matéria-prima em Santo Antão é, desde o início, uma das maiores dificuldades enfrentadas. Na ilha, segundo a mesma fonte, podem até encontrar materiais básicos como tecidos, colas ou acessórios específicos para o artesanato, mas na sua opinião é uma “verdadeira missão” e, quando se encontram, os preços chegam a ser quase quatro vezes mais caros do que na cidade da Praia.

“Às vezes, é mais fácil improvisar do que esperar por materiais que talvez nem cheguem. Aqui temos de aprender a fazer muito com quase nada,” explicou.

Foi essa realidade que o levou a “mergulhar” na reutilização de materiais recicláveis. Pacotes de leite, restos de tecidos, tampas, pedaços de cartão - tudo passou a ser visto com outros olhos.

“A escassez aguçou o engenho, e transformou o que era descartável em peças únicas e cheias de personalidade. Cada carteira é, por isso, não só um produto artesanal, mas também uma pequena declaração ecológica e de resiliência,” pontou.

Segundo Hernani Lima, com o crescimento do turismo na ilha, surgiram novas oportunidades para escoar os produtos. Parcerias com outros artesãos como uma colega com loja na Ponta do Sol têm sido importantes para manter a dinâmica do projecto.

No entanto, a falta de mão-de-obra tem sido outro obstáculo crescente.

“A procura aumentou muito, especialmente na época alta. Mas falta quem queira realmente aprender e seguir o artesanato”, lamentou.

Hernani Lima disse que já tentou partilhar os seus conhecimentos com jovens da comunidade. Organiza pequenas sessões informais, dá dicas, ensina técnicas, muitos até aparecem, curiosos, entusiasmados nas primeiras vezes. Mas poucos continuam.

“Eles vão, dizem que querem aprender, mas depois desaparecem. Talvez por falta de apoio, talvez porque o artesanato ainda não é visto como uma profissão com futuro. Mas eu acredito que pode ser”, asseverou.

Apesar das limitações, Hernani Lima reconheceu os avanços, ainda que lentos, no reconhecimento do artesanato local. Lamentou que no município da Ribeira Grande se organize apenas uma feira por ano, quando essas iniciativas são, na sua visão, fundamentais para dar visibilidade e dignidade ao trabalho dos artesãos.

Por isso, defendeu a criação de uma associação de artesãos de Santo Antão, como forma de dar voz ao sector, fortalecer a organização colectiva e criar mais oportunidades ao longo do ano.

“Precisamos de estar mais unidos. Uma associação ajudaria a criar uma rede de apoio entre nós, a lutar por melhores condições e, principalmente, a organizar mais feiras ao longo do ano,” defendeu.

Na sua visão, mais eventos, mais apoio e mais união podem ajudar a consolidar o artesanato como uma via real de desenvolvimento local e como uma carreira com valor reconhecido.

“Não basta esperar pelas iniciativas das instituições. Temos de criar a nossa própria dinâmica. Há muita coisa bonita a ser feita aqui, só falta mostrar ao mundo,” reforçou.

LFS/CP

Inforpress/Fim

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