
*** Por: Sandra Custódio, da Agência Inforpress ***
Cidade da Praia, 10 Nov (Inforpress) – A Professora Doutora Fátima Fernandes considera-se uma pessoa muito altruísta, respeita o ser humano e gosta de tratar as pessoas como gostaria que a tratassem, embala-se e conta um pouco sobre a sua trajectória existencial.
Quem vê Fátima Fernandes, Maria de Fátima Fernandes, seu nome de baptismo, não imagina que esta mulher batalhou muito na escadaria da vida, desde tenra idade, com garra e perseverança para ter chegado aonde chegou hoje e desfrutar uma existência com dignidade, de forma mais sábia, alegre e agradável.
Nesta nossa conversa intimista e descontraída, a miúda que nasceu em São Tomé, na Roça Água Izé, na freguesia de Guadalupe, em 1970, há 55 anos, filha de pais cabo-verdianos, ilha do Fogo, que foram trabalhar naquelas roças, abre as portas do seu gabinete, à Inforpress, na Universidade de Santiago, onde conversamos durante cerca de uma hora, lembrando coisas boas e menos boas, porque a vida é uma montanha-russa de emoções, repleta de altos e baixos.
Cresceu em Portugal, para onde os seus pais foram em 1972, tinha ela dois anos, primeiro nas Portas de Benfica, no bairro das Fontainhas, depois mudaram-se para a antiga Estrada Militar, agora Reboleira, freguesia de Águas Livres, no concelho da Amadora.
Estudou nas escolas primárias e secundárias daquela freguesia, e antes de ir para a faculdade, esteve dois anos no Liceu Nacional da Amadora onde fez Línguas e Literaturas Modernas, mas queria ter feito francês que gosta muito para leccionar esta língua, mas não calhou.
Nas terras lusas viveu uma infância marcada por uma série de dificuldades, nos bairros informais, maioritariamente habitados por cabo-verdianos, onde as pessoas ainda não tinham emprego certo, o pai trabalhava na construção civil e a mãe numa fábrica de rebuçados.
“Alguma pobreza, muita dificuldade em ter acesso a alguns bens como a água, electricidade, passei muito da minha infância a carregar água para encher os baldes que a minha mãe deixava em casa. Comecei muito cedo a lidar com os trabalhos domésticos para ajudar a minha mãe. Foi uma infância de muita luta, muita labuta. Lembro-me que os meus pais faziam muito esforço para nos ajudar a estudar e a ter o sustento da família”, recordou.
Outra memória da sua infância decorrente dessa experiência de morar nos bairros informais tem a ver com o comportamento de violência que fazia viver muito sobressaltado, com medo, sobretudo nos finais de semana em que havia jogos, e era recorrente, por exemplo, encontrar uma pessoa morta, a polícia a invadir o bairro para controlar e verificar as casas.
“As Fontainhas era um bairro que, nos anos 70, tinha má fama. Havia muitos jogos ilícitos, bebida, violência doméstica e, correntemente, ouvia os meus pais a comentar que aquele não era um bom ambiente para viver. Isso até nós irmos para a Reboleira. Na Reboleira já a vida foi mais calma. Conseguimos um terreno no Alto da Damaia, e as coisas começaram a melhorar”, reviveu.
Fátima Fernandes, que é a mais velha dos dez irmãos, sete biológicos e três de criação, sendo quatro rapazes e seis meninas, uma casa cheia de gente, viveu na Reboleira até os 23 anos quando foi para a França.
Embalada nas suas memórias referiu também que a sua juventude foi feita à base de muito trabalho, ajudando a mãe tanto nas lides da casa como na limpeza das obras de construção civil, para onde a progenitora foi trabalhar mais tarde.
Aos 14, 15 anos começou a trabalhar como empregada doméstica, juntamente com a mãe, e aos 16 anos, incentivada pela avó materna decidiu estudar à noite, fez o 11.º e o 12.º ano, enquanto trabalhava durante o dia.
Uma vida de sacrifícios. Terminou o 12.º, entrou para a faculdade no curso de Estudos Portugueses e para dar continuidade aos estudos, foi “babysitter”, tomando conta de uma criança em casa de família, um trabalho extra que conseguiu para poder fazer o curso de 04 anos, a título privado.
“Fui uma jovem muito ocupada em termos de trabalhos de casa, responsabilidades familiares, mas sempre gostei de estudar e ler. Sempre pensei que na educação é que estaria a solução para o meu futuro”, conta.
Quadro docente da Uni-CV, actualmente, Pró-Reitora para a Política Estudantil, Social e Extensão, e directora da Cátedra Eugénio Tavares de Língua Portuguesa, também professora de Literaturas de Língua Portuguesa (portuguesa, cabo-verdiana brasileira e africanas, na Uni-CV, Fátima Fernandes chega a Cabo Verde em 1995, fazer recolhas, no quadro do seu doutoramento, ano em que houve também a erupção vulcânica, e ficou apaixonada pela terra.
“Cheguei num dia em que chovia imenso. Na altura não havia voos directos, tínhamos de ir ao Sal, e depois vir para a cidade da Praia. Chovia muito. Foi uma coisa mágica, muito interessante”, recordou, referindo que antes de se instalar na capital, foi logo na manhã seguinte para o Fogo conhecer a ilha de onde são os seus pais.
“Ah, fiquei encantada com a ilha do Fogo. Naquele ano tinha chovido, e há um efeito muito positivo na gente quando nós vemos Cabo Verde realmente verde. Fui muito bem-recebida e acolhida pelos familiares dos meus pais. Digamos que foi o meu primeiro mês de férias em 20 anos”, recordou.
Quando voltou à Praia no final do mês de Agosto, decidiu ficar e começou a procurar trabalho.
Assim, como já tinha o mestrado, e na altura não havia muita gente com uma formação superior avançada, lembra-se de ter ido falar com a Ondina Ferreira, na altura ministra, que a encaminhou, tendo encontrado a “figura extraordinária” do professor Arnaldo França, que a recebeu “muito bem”.
A partir daí, aos 25 anos, veio trabalhar no Instituto Superior de Educação, agora Universidade de Cabo Verde (Uni-CV) onde começou a sua carreira por Cabo Verde, dando aulas aos bacharéis do curso de Estudos Cabo-verdianos e Portugueses, pessoas de 40, 40 e tal, 30 e muitos.
“Essa experiência foi interessante porque todos os meus primeiros alunos eram pessoas mais velhas do que eu. Lembro-me que tínhamos discussões muito interessantes em que eles achavam que eu era muito nova para lhes dar aulas”, disse.
Prestes a completar 31 anos de trabalho, Fátima Fernandes tem um filho de 25 anos e, por opção, vive sozinha desde 2007, altura em que faleceu o seu companheiro, pai de seu único filho, que amou muito.
“Não sou muito de aventuras. Sou uma pessoa que gosta de relações mais sólidas e não é muito fácil encontrar isso. Não fomos feitos para estar sozinhos, acho que a pessoa completa-se tendo um companheiro, mas não pode ser qualquer um. Então, para estar mal-acompanhada, é melhor ficar assim. Depois tenho outra coisa que me preenche muito: sou muito dedicada ao meu trabalho, à minha profissão e à literatura”, explicou.
Muito reservada no seu espaço, a mulher que também se descreve como uma pessoa auto-exigente, que lida muito mal com a mentira e a hipocrisia, gosta de visitar os poucos amigos e familiares que aqui tem, e sempre que tiver oportunidade, pelo menos duas vezes por ano, vai a Portugal juntar-se à família que ficou lá.
Não muito dada a festas e sem uma grande vida social, Fátima Fernandes que prefere um cinema ou prestigiar os escritores com a apresentação de livros, sai pouco, gosta das lides de casa que para ela é uma terapia, mas de cozinhar agora já não tanto, embora ache a actividade interessante.
Quanto ao legado que gostaria de deixar, a Professora Doutora quer desenvolver um trabalho com crianças para formar bons leitores, um projecto que chama “leituras inclusivas”, trabalhando junto com equipas de bibliotecas escolares, e fazer a nova geração confiar e acreditar no potencial da leitura, um dos instrumentos da educação e formação que, conforme analisa, faz toda a diferença.
SC/HF
Inforpress/Fim
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