Independência/50 Anos: As feridas do 31 de Agosto em Santo Antão ainda sangram – uma tragédia silenciada que a História não escreveu

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Independência/50 Anos: As feridas do 31 de Agosto em Santo Antão ainda sangram – uma tragédia silenciada que a História não escreveu
30/10/25 - 04:00 am

***Por: Lucilene Fernandes Salomão, da Agência Inforpress***

Ribeira Grande, 30 Out (Inforpress) – Em Santo Antão, o 31 de Agosto de 1981 continua a sangrar na memória colectiva, 44 anos depois, marcado por repressão, prisões arbitrárias, torturas, humilhações e pela morte de Adriano Santos, numa tragédia silenciada pelos livros de História.

Naquele dia, a repressão imposta pelo regime de partido único, liderado por Pedro Pires, atingiu de forma brutal agricultores e comunidades que resistiam à implementação da Reforma Agrária.

Prisões arbitrárias, espancamentos e humilhações públicas deixaram marcas profundas numa ilha mergulhada no medo.

Foi nesse contexto que Onildo Ferreira, então com apenas sete anos, viu a sua vida mudar.

“Eu era uma criança, mas lembro-me de tudo. De repente, fui privado do meu pai. Ele não tinha feito nada de errado, mas foi preso. Roubaram-me o pai e a infância”, contou à Inforpress, com a voz carregada pela dor de quem sobreviveu ao silêncio.

Onildo Ferreira disse que no dia 31 de Agosto estava em casa dos avós quando o eco dos gritos e dos tiros rasgou o quotidiano.

“Vi o Adriano Santos no chão, morto, alvejado. Como aconteceu com ele, podia ter acontecido com o meu pai, com o meu tio e com tantas outras pessoas”, recordou.

O impacto, segundo a mesma fonte, foi devastador, famílias desagregaram-se, propriedades foram abandonadas, negócios ruíram e comunidades inteiras recuaram.

“Não foi apenas um homem preso. Foram famílias destruídas, vidas interrompidas e uma ilha mergulhada no medo”, afirmou.

Foram tantos os traumas deixados naquele dia fatídico que, segundo Onildo Ferreira, a simples visão de um Land Rover lhe despertava o pânico.

“Eu escondia-me sempre que via um Land Rover. Era nesse carro que vinham prender as pessoas para levar para a tortura. Para mim, aquele carro era o símbolo do terror”, salientou.

Conforme Onildo Ferreira, os homens detidos foram inicialmente levados para a cadeia de Ponta do Sol, sendo depois transferidos sucessivamente entre São Vicente e Santo Antão, numa estratégia, de desestabilizar, isolar e quebrar resistências.

Mais tarde, o pai relatou-lhe as condições em que esteve preso tratamento desumano e humilhação sistemática.

Os detidos, conforme relatou, eram obrigados a esperar que os porcos “experimentassem” a comida antes de comerem, passavam dias sem banho e faziam as necessidades em latas, numa cela sem casa de banho.

“Foi graças à intervenção da Cruz Vermelha, que teve acesso a fotografias das torturas, que muitos puderam sair vivos e contar a história. Se não fosse isso, talvez ninguém tivesse sobrevivido”, desabafou.

Os julgamentos, conforme Onildo Ferreira, decorreram num tribunal militar, apesar de os detidos serem civis.

“Não tiveram direito a defesa justa nem garantias mínimas de um processo imparcial. E até hoje ninguém respondeu por aquilo. Quem governava o país tinha influência directa em tudo. Deveria ter-se sentado no banco dos réus”, denunciou.

A prisão de Epifânio Ferreira, pai de Onildo, lançou a família num labirinto de medo e resistência silenciosa.

“Éramos quatro filhos. A minha mãe ficou sozinha, sem recursos, a correr atrás de notícias em Ponta do Sol e São Vicente. Sofremos perdas materiais, mas o pior foi a humilhação. Na escola éramos discriminados por sermos filhos de ‘reaccionários’. Vivíamos num clima de intimidação e medo”, relatou.

Mais de quatro décadas depois, Onildo diz que a dor não vem só do passado. Vem da ausência de justiça, da falta de reconhecimento e de um país que nunca assumiu plenamente os seus fantasmas.

“Nenhum dos dois partidos que dominaram a cena política, o Partido Africano da Independência de Cabo Verde (PAICV) e o Movimento para a Democracia (MpD), enfrentou de forma clara e pública esta página sombria da história”, enfatizou.

“Um devia pedir desculpas pelo que fez, o outro por não ter levado os mandantes ao banco dos réus. A pior tortura foi ver cabo-verdianos a torturarem cabo-verdianos. Irmãos a humilhar irmãos”, lamentou.

Para Onildo, o silêncio é também uma forma de violência.

“Quando se pergunta a um jovem o que foi o 31 de Agosto, ele não sabe. Isso é uma aberração. Essa data tinha de estar nos livros de História de Cabo Verde. É uma ferida profunda feita à população de Santo Antão”, afirmou.

Onildo recorda ainda o caso de Osvaldo Rocha, primo do pai, que morreu em consequência das torturas.

“Batiam-lhe sempre na zona do abdómen. Quando finalmente deixaram que fosse ao médico, já não havia nada a fazer. Disseram que tinham enviado um defunto. Essa imagem permanece como uma cicatriz profunda. Pergunto-me: porquê? Por que razão aquilo aconteceu? Não havia motivo. Nada. Nada”.

Mais de 40 anos depois, Onildo não pede vingança. Pede justiça e memória.

“Não queremos vingança. Queremos justiça e memória. As feridas do 31 de Agosto ainda sangram”, afirmou.

E neste sentido Onildo Ferreira disse que o país que construiu a sua democracia continua a dever uma resposta às vítimas e às famílias atingidas pela repressão.

“A história daquele dia, de agricultores presos, de corpos feridos, de famílias humilhadas ainda não foi escrita nos manuais escolares. Enquanto não for contada, a ferida continuará aberta”, acentuou.

A Reforma Agrária foi uma das políticas centrais do regime de partido único liderado por Pedro Pires e pelo Partido Africano da Independência de Cabo Verde (PAICV), nos anos 1980.

O processo, que pretendia redistribuir terras agrícolas, enfrentou forte resistência em Santo Antão, onde agricultores defendiam a posse tradicional das suas propriedades.

O 31 de Agosto de 1981 tornou-se um dos episódios mais marcantes e violentos desse período, com repressão, detenções e mortes.

LFS/HF

Inforpress/Fim

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