Lisboa, 30 Mar (Inforpress) – As marcas do passado colonial português “continuam vivas” em ideias, emoções e ações, considera o pintor afrodescendente Francisco Vidal, para quem “descolonizar o pensamento contemporâneo português” continua a ser importante, passadas cinco décadas da Revolução de Abril.
“Temos de fazer isto, passados 50 anos, porque ainda há marcas”, conclui oartista plástico nascido em Lisboa, em 1978, já depois da Revolução dos Cravos, como faz questão de sublinhar, numa entrevista à agência Lusa, a propósito da efeméride.
Francisco Vidal – cuja pintura é dominada por cores vivas e linhas caligráficas que lhe conferem movimento – sente-se, ao mesmo tempo, cidadão português, angolano e cabo-verdiano, por ser descendente de pais africanos, que o educaram numa “cultura de paz”.
“Eu já nasci num Portugal que vai do Minho até ao Algarve, não vai até Timor, mas sou descendente de um pai e de uma mãe que vêm de outros territórios que eram chamados colónias”, ressalvou o pintor que se tem interessado por descobrir a história dos movimentos anti-colonialistas, sobretudo na figura de Amílcar Cabral (1924-1973), político e intelectual guineense, envolvido na luta antifascista e contra o colonialismo português.
Amílcar Cabral, nascido na Guiné, um dos fundadores do então partido clandestino PAIGC - Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde, foi assassinado em 1973.
“Nasci depois do 25 de Abril, mas estudo bastante o passado colonial porque tenho de perceber de onde venho e para onde vou”, comentou o artista que em 2014 apresentou o projeto de pintura “Utopia Luanda Machine” na 56.ª Bienal de Veneza, no Pavilhão de Angola, com curadoria de António Ole, e também na Expo Milão, com curadoria de Suzana Sousa.
O artista plástico considera que ainda hoje é importante “descolonizar” o pensamento, as emoções e as ações da sociedade portuguesa: “Ainda vivemos, todos nós, numa estrutura que vem do espaço colonial, portugueses, angolanos, cabo-verdianos, guineenses, são-tomenses, todo o nosso universo lusófono pensa em português. Este tipo de pensamento ainda existe no pensamento contemporâneo português”, sublinha.
“Eu percebo a necessidade de sair dessa mentalidade e entender essa estrutura mental colonizada, e trazê-la para um presente e um futuro mais consciente”, defende, lembrando um passado que “deixou marcas” que “continuam vivas e ativas”.
No Festival Iminente, Francisco Vidal apresentou uma performance com batucadeiras cabo-verdianas para recordar e homenagear o ator Bruno Candé, assassinado em 2021 em pleno dia, em Lisboa, por um ex-combatente da guerra colonial, que ficou registado como ataque de ódio racial.
Para a performance, Vidal disse ter-se apercebido que falou com as batucadeiras para explicar que era importante fazer aquela iniciativa, “embora Bruno Candé fosse guineense e não cabo-verdiano”.
“Só mais tarde refleti sobre essa necessidade minha de lhes justificar”, disse, referindo-se às suas experiências de infância, e a certas crenças que continuam na mente de muitos africanos e afrodescendentes.
“Ultimamente estive a ver o documentário sobre a guerra colonial do Joaquim Furtado e percebi que, nessa altura, existiu uma estratégia do exército português de 'dividir para reinar' nas antigas colónias. A ideia, colocada em prática, era pôr os guineenses contra os cabo-verdianos, porque foram aqueles que, no espaço colonial, da ditadura, tinham sido instrumentalizados para que esse espaço existisse em África”, apontou o artista que usa também o desenho e instalações no seu trabalho.
Quando era criança, nos anos 1980, Francisco Vidal recorda-se de ouvir várias pessoas dizerem-lhe que “ser filho de pai angolano e mãe cabo-verdiana era uma mistura terrível”.
“'O teu pai e a tua mãe não se vão dar bem, não vai dar certo', diziam-me. Isto foi e é ainda um traço da cultura colonial que temos de descolonizar” passadas várias décadas, defende o artista licenciado em Escultura pela Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha, e que estudou Artes Visuais na Escola de Artes Visuais Maumaus, em Lisboa.
Vidal viveu durante algum tempo nos Estados Unidos, obtendo o mestrado na School of Visual Arts da Columbia University, em Nova Iorque. Começou a pintar profissionalmente em 2000, e a expor com regularidade a partir de 2005, em mostras individuais e coletivas, em Lisboa, Luanda, Paris, São Tomé, Joanesburgo, São Paulo, Londres, Macau, Lagos e Chile.
“Essa cultura anti-guerrilha do exército português, de dividir para reinar, existiu realmente no passado. Não acredito que na nossa cultura isso aconteça ainda. Já não queremos dividir os cabo-verdianos para ter domínio sobre eles, mas ainda há resquícios dessas marcas”, avaliou, em entrevista à Lusa.
Tendo nascido em Portugal, “no pós-guerra colonial ou guerra das independências do ponto de vista africano”, e “sendo também angolano e cabo-verdiano, que é outro espaço de pensamento”, Francisco Vidal sente que é, ao mesmo tempo, “português, europeu e africano”, culturas sobre as quais tem refletido, e que derramam uma conotação histórica e política na sua obra, na qual aborda temáticas como a diáspora africana, miscigenação cultural e identitária, e as correntes transculturais.
"Eu não vejo nenhuma diferença entre ser europeu ou africano. Sou completamente não binário, e vejo-me como uma pessoa. Mas há artistas brasileiros afrodescendentes que têm uma ideia completamente diferente, porque estão mais perto dos afro-americanos, do lado de lá do Atlântico. Dizem que não conhecem o seu passado, o nome de família, as suas raízes. Sentem um vazio muito grande no preenchimento da sua biografia", disse.
Francisco Vidal também encontra no passado português ligado à ditadura um “culto do único, do primeiro, de só poder existir um, melhor do que todos, como no tempo do Salazar”: “Acredito que temos esta 'síndrome Fernando Pessoa' na nossa cultura", no sentido de ter de haver uma referência acima de todas as outras, maior que todas as outras, "que inibe a cultura artística de crescer e de evoluir, como na altura do Estado Novo”.
“Ao mesmo tempo, a nossa cultura é comum, é nossa, partilhada, e enriquece com os pontos de vista diferentes de todos estes lugares” nas ex-colónias, sublinha o artista cuja obra está representada em várias coleções públicas e privadas, como as da Fundação EDP, da Fundação PLMJ e a Coleção Sindika Dokolo.
Inforpress/Lusa/Fim
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