Cidade da Praia, 09 Jun (Inforpress) – Os jornalistas cabo-verdianos enfrentam o dilema entre preservar a essência do jornalismo tradicional e adaptar-se às exigências do ecossistema digital, face ao avanço da tecnologia e da inteligência artificial.
O jornalismo cabo-verdiano, herdeiro de uma prática de rigor, apuração cuidadosa e busca pela verdade, vê-se pressionado a responder às exigências de um ecossistema informativo cada vez mais digital e veloz.
A transição, porém, não tem sido igual para todos, enquanto as ferramentas se multiplicam, as redacções e os profissionais tentam adaptar-se sem perder a alma do ofício.
José Carlos Semedo conhece bem esse dilema. São quase 40 anos dedicados à televisão cabo-verdiana, testemunhando cada etapa da metamorfose tecnológica.
Hoje, circulando pelos corredores da Rádio Televisão Cabo-verdiana (RTC), onde ainda dá o seu contributo, carrega nas palavras o peso de quem aprendeu jornalismo no tempo da fita magnética e da edição manual.
"Comecei numa altura em que tudo era feito manualmente, com fita, câmara pesada, edição física, passei pela antiga TV, RTP África, Tiver... vi muita coisa mudar. Mas confesso, continuo a pensar de forma analógica e sinto dificuldades com este novo modelo", confessou.
A honestidade de Semedo revela o sentimento de uma geração que aprendeu o ofício com as mãos e o olhar atento, longe dos algoritmos e da inteligência artificial pois para ele, o problema não é apenas técnico, é mental.
"O corpo de jornalistas da televisão ainda não domina plenamente o digital. É uma limitação prática que sentimos no dia-a-dia. A informação corre à velocidade da luz e muitos de nós ainda estamos com um pé no passado", admite, caminhando lentamente pelo edifício da RTC.
Para o veterano, a solução não passa por simples formações ou actualizações.
"Não acredito muito em reciclagens. Essa revolução digital pertence à nova geração. Os mais velhos devem dar lugar. Não é só uma questão de técnica; é de mentalidade", sentenciou, com a voz firme de quem conhece os bastidores da profissão.
Mas as inquietações não moram apenas na adaptação tecnológica.
Num mundo hiperconcentrado, onde qualquer publicação na rede social “facebook” pode ganhar ares de notícia legítima, a luta pela credibilidade tornou-se mais árdua.
"Hoje, uma publicação no facebook é muitas vezes tomada como verdade absoluta. O jornalista continua a ser a fonte credível, mas o público precisa ser educado para distinguir uma notícia legítima de um ‘post’ qualquer", alertou Semedo, ciente dos riscos da desinformação.
Enquanto isto, João de Pina, da nova geração da TCV, soma seis anos de redacção e já carrega no rosto as marcas da inquietação contemporânea, razão pela qual concorda com o veterano Semedo.
"Vivemos um jornalismo em constante transformação. Há novas ferramentas todos os dias, mas as redacções nem sempre estão preparadas. E isso afecta directamente a qualidade do trabalho", observou.
Entre fascínio e desconfiança, de Pina reconhece o potencial da inteligência artificial ciente que “aparece como a mais recente personagem nesta narrativa”.
"A IA pode ajudar, sim. Resumir documentos, gerar ideias, facilitar tarefas... Mas o problema é quando se usa de forma irresponsável, como substituição total do jornalista. Isso compromete a qualidade e a ética", realçou.
Do lado de Semedo, o alerta ecoa mais grave, pois defendeu que "a tecnologia pode ser aliada, mas jamais substituta da consciência crítica e da responsabilidade que define um jornalista”.
“A inteligência artificial não deve substituir o profissional. Mais importante, o jornalista tem de ser honesto, não pode assinar como seu algo que foi feito por uma máquina", disse.
João de Pina reforçou a preocupação ética, por entender que "o jornalista deve usar a IA como apoio, nunca como atalho. A inteligência artificial não pode ser desculpa para preguiça nem para falsificação de trabalho".
Para Geremias Furtado, jornalista e presidente da Associação Sindical dos Jornalistas de Cabo Verde (AJOC), “a questão vai além de gerações ou preferências: é estrutural”.
CG/SR//HF
Inforpress/Fim
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