
Cidade da Praia, 20 Dez (Inforpress) - Aos 82 anos, o músico e professor Djick é uma fonte viva de inspiração, acumulando a sabedoria de quem atravessou as complexidades da era colonial para se tornar um pilar da cultura cabo-verdiana.
Henrique Teixeira Oliveira, conhecido carinhosamente como "Djick", é um homem de muitas vidas numa só: músico, professor de Filosofia e introdutor do judo em Cabo Verde, carrega consigo uma trajectória marcada por uma educação religiosa "profunda" e uma vocação sacerdotal que, segundo o próprio, "sofreu um boicote".
Natural da ilha da Brava, Djick é filho de uma união que ele descreve como um "Romeu e Julieta" da vida real. O pai, de ascendência judaica e família nobre, era um emigrante que dedicou duas décadas à pesca do bacalhau, já a mãe, uma mulher do povo, analfabeta e "ultra-religiosa", cujo próprio filho foi quem a ensinou a escrever o nome.
Explicou que essa desigualdade de estatutos sociais na sociedade colonial gerou tensões profundas na família, particularmente do lado do seu pai, que era judeu.
"Nós, os filhos, sofremos um impacto com isso", relembra, e determinado a não seguir o destino de privações da mãe, foi o único dos seis irmãos a frequentar o liceu e a universidade, licenciando-se em Ciências Histórico-Filosóficas em Coimbra, Portugal, como bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian.
Dos irmãos, três rapazes e duas meninas, um foi agricultor e os outros seguiram para a emigração, Canadá, Estados Unidos e Portugal, de modo que ele Djick se considera um cabo-verdiano típico do povo, que conseguiu subir um pouco na escala social, através dos filtros que a sociedade colonial tinha na época.
A infância foi marcada pela ausência do pai, que trabalhava no mar, mas sempre presente através de cartas, com os cuidados em garantir o sustento da família, para que os filhos e a mulher tivessem tudo e não faltasse nada, e pela figura central da mãe, a sua "rocha firme".
“O meu pai só regressou à ilha depois de se reformar, aos 70 anos. De modo que eu e os meus irmãos crescemos aos cuidados da nossa mãe. A figura paterna tem um papel fundamental na estruturação da personalidade, na vida emocional da criança, de modo que quem serviu de suporte à minha vida emocional foi a minha mãe”, conta, recordando que, por isso, tinha muito medo de perdê-la e esses medos acentuavam-se muito no tempo das águas.
Isto porque, explicou, como a Brava fica muito a sul do arquipélago, na rota dos furacões do Atlântico, nessa época, com as tempestades, receava que algum raio vitimasse a sua progenitora e perdesse a “rocha firme” na qual ele se encostava.
Nem todas as memórias são doces, pois Djick recorda com dor um professor da 4ª classe a quem chama de "torcionário", relatando que o autoritarismo desse mestre deixou marcas físicas, sentia muitas dores no estômago e palpitações, e só anos depois, em Coimbra, descobriu que sofria de distúrbios neurovegetativos causados por esses traumas.
“Vim a descobrir o que estava a acontecer comigo, por causa de um pesadelo que tive na infância, em que assassinava o meu professor. Acordava banhado em suores frios. E esse pesadelo surgiu uma vez em Coimbra, numa circunstância em que tive um conflito com um professor universitário, um salazarista ferrenho, catalisando-me um estado de ansiedade e tive de procurar ajuda médica”, reviveu.
Em contrapartida, no liceu em São Vicente, encontrou mestres como Aurélio Gonçalves (Nhô Roque) e Baltazar Lopes da Silva, e foi por influência afectiva e admiração por Nhô Roque que decidiu seguir a carreira académica e o amor pela literatura.
“Dois professores que marcaram a minha vida. No liceu, queria ser escritor como o Aurélio Gonçalves. Não só despertei para a literatura como também era um leitor compulsivo de romances. Escrevia contos e dava ao Roque, ele lia e incentivava-me, então achei que devia tirar o curso que ele tinha tirado, isto é, Ciências Histórico-Filosóficas e assim escolhi, por influência afectiva”, descreveu.
O professor Djick é o mestre que a religião moldou e o destino desviou, porquanto a religiosidade da família, impulsionada por tias beatas, quase o levou ao seminário, no entanto, o desejo de ser padre "sofreu um boicote" do pai e, mais tarde, foi confrontado pela efervescência da vida em São Vicente.
"A minha juventude era cultura, música e leitura. A vida de sacerdote foi a minha vocação frustrada, mas sou um homem integralmente cristão", confessou, anotando que a transição para a vida adulta lhe trouxe conflitos íntimos.
Nisto, recorda, entre risos, a sua iniciação sexual no Lombo, em São Vicente, e o choque que sentiu entre a sua consciência moral e a realidade.
“Fazíamos muitas serenatas e passeios, muita música e namoradas, mas com as regras da época. A libertação é um processo doloroso, mas acabei por colocar a religião no seu lugar e a vida sexual no seu devido espaço. De modo que a minha evolução nesse aspecto foi um bocado dramática”, disse.
O homem que encontrou no ensino sua nova missão, o sacerdote que a escola ganhou, com uma vida familiar preenchida, teve dois casamentos e seis filhos, dedicado mais de 50 anos ao ensino e à comunidade.
Foi o primeiro judoca de Cabo Verde e um incansável promotor da música, méritos que lhe renderam várias condecorações.
Hoje, casado há mais de quarenta anos, mantém uma rotina recatada, dá aulas de música à tarde, frequenta concertos e não dispensa a "volta higiénica" de carro com o amigo Totó (dos Tubarões) para conversar sobre a vida.
"Dei a minha vida a esta cidade, ao ensino, às pessoas. O legado está entregue. Se recordarem de mim, significa que conquistei a imortalidade na história", conclui com a serenidade de quem sabe que cumpriu a sua missão, entretanto, sempre à disposição para colocar a sua experiência e competência, enquanto manter a lucidez, porque daqui não leva nada.
SC/JMV
Inforpress/Fim
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